Quando
eu era pequena, ouvi uma história de um homem desmemoriado. Sabia seu nome e de
seu corpo, os outros eram só outros que passavam por ele com cara de “coitado,
pobre homem” e não importava, ele esquecia. Ouvi, certa vez, que a memória ia diminuindo e por fim, só se lembrava de
coisas momentâneas, vivia-se de um momento, no máximo dois.
E
o homem chorava por não se lembrar de nada, e sorria por ter esquecido tudo. Lembrou-se
de uma voz quando ouviu uma música e gaguejou a letra.
Chorou! Que música linda
escutou pela primeira vez, ou pela milésima, e o fez dançar com seu corpo
desajeitado. Seus pensamentos navegaram por caminhos nunca vistos; sentiu as
cores, ouviu o vento, amou a paisagem. Mas passou.
Quando
alguém entrou em seu quarto e contou, de novo, a notícia triste, ele chorou.
Chorou como se fosse a primeira vez, sentiu como se nunca tivesse vivido aquela
dor antes. Seu coração ficou pequeno e, de repente, esqueceu.
E
assim, entre dores primeiras e sorrisos únicos, o homem desmemoriado
envelhecia na pele e rejuvenescia na cabeça; em seu próprio mundo, ele se
apegava a coisas que ninguém mais esperava dele.
Lá ele jogava futebol e era
culto, respeitado. Lá ninguém pegava em seus braços, ele andava sozinho.
Passeava por onde queria, assistindo desfiles de belas moças e rapazes fortes.
Dentre as belas moças, reconhecia um rosto, e chorava. A dor voltava e diminuía
seu coração. Onde está a bela moça? Pode vê-la, mas como tocá-la novamente? E assim,
do mesmo jeito rápido e inesperado que a pergunta vinha, sumia. Ele esquecia.
Assistia
com interesse o transitar de pessoas sem rosto em sua casa. Andavam como se a
casa fosse deles, oras, que absurdo! Desciam e subiam escadas, abriam gavetas.
Quem eram todas aquelas pessoas? Mas quando olhava de perto algum rosto para
pedir socorro, sorria. Seus olhos marchados pelo tempo brilhavam e ele sorria.
Netas, filhas, noras. Não pode ser, ele não se sentia com tanta idade para ter
tantas gerações a sua frente. Mas não tinha medo, sentia-se seguro quando
reconhecia aquelas vozes, aqueles rostos e passos.
Mas, de repente, sumia todo
mundo. E lá, sozinho novamente com sua cabeça jovem, ele ia fazer outros
caminhos, únicos, novos. E os caminhos iam e vinham, sumia a grama e surgia o
asfalto, crescia uma cidade. Ele comandava e sorria ao ver tanta gente feliz
gritando seu nome. Agradecia com um aceno emocionado. E esquecia. Tudo
escurecia e vinha a bela moça fazê-lo chorar.
Chorava
porque a moça não vinha sozinha, dava a mão para o menino pequeno e cabeludo.
Pelo menos ela não estava sozinha. De novo, eles acenavam, e o homem pedia para
que não fossem. E eles iam.
Porque
tanta gente passeando pela casa? Porque tanta gente beijando sua testa e dando
nomes a ele; avô, pai. Não acreditava ser nada disso. Acreditava que essas
pessoas estavam enlouquecendo e só queria colocar um pouco de sanidade na
cabeça de todas, como não podia, só sorria.
Sorria tanto que, por vezes, chorava. Não sabia de onde vinha a inspiração para tantas histórias, não sabia de onde vinha tanta coisa nova. Onde estaria o velho? Seria ainda um bebê? Que idade teria? A do espelho ou a que sentia no coração?