quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Três caminhos de uma história


"Das pernas entrelaçadas na cama até às 11 horas de sábado, passaram a cobertores separados e noites inteiras no sofá da sala: sozinhos, mesmo tendo um ao outro como companhia. Muda-se a concepção de companhia, o que antes significava conforto, hoje é desesperador incômodo. Ser solidão quando se tem alguém é difícil. Falta coragem de dizer que acabou, sobra esperança de um recomeço que enoja. E as pernas, não mais entrelaçadas, correm descontroladamente para lados opostos. Cheios de culpa, dividem-se entre beijos para manter as aparências e olhares furtivos a procura de outros nas ruas."

Repousou o cigarro no cinzeiro de vidro e o corpo na poltrona. Enfim conseguira escrever um parágrafo inicial para seu romance. Claro, nada pronto, uma ideia sutil, as costas já reclamando da proximidade da morte, o café frio e o whisky quente. Fumou o resto do cigarro numa tragada só, como foram chupadas suas energias de tão pouco tempo pra cá. "Será que o amor é uma certeza ou uma construção?"

Como fora chegar naquele parágrafo, seu já cansado pensamento não podia entender. Talvez, aquele adeus ainda ecoava de formas diferente dentro do que era um coração. "Amor não era certeza, era perigo, era o prelúdio da destruição", pensava enquanto procurava mais um cigarro na velha carteira que comprara não sabia mais quando. Acendendo-o, pensou em buscar mais alguma coisa que anestesiasse a sua alma. Mas não podia... Aquilo era o início não só de um romance, mas de uma dolorosa volta àquilo que, inutilmente, muitos chamavam de lembranças.

Tanto devaneou que o cigarro se desfez, queimando-lhe as pontas dos dedos e obrigando seus olhos cansados a fitarem mais uma vez o parágrafo. Em pensar que todo aquele amor foi idealizado, só saiu de sua cabeça para as folhas mal escritas dos livros que venderam milhares. Tudo platônico. Era escritor famoso e ser humano fracassado. Irritou-se, espalhando os papéis pela mesa: as pessoas leriam, mais uma vez, o que sua falta de coragem não o permitiu realizar, suas mentiras transformadas em poesia...

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Médico e o Monstro

Já não existia, era só corpo jogado no mundo, tentando inspiração naqueles filmes de auto-ajuda que passavam na televisão abraçada por uma grade que o impedia de mudar o canal; buscava por quês naqueles livros de “ajuda-todo-mundo” que, com seus finais felizes, vendiam aos montes.
Somente caminhava por não conseguir controlar suas pernas; nem em seu próprio corpo mandava mais. Imagina só! Era alma penada, mas sem a alma. Não se expressava, nem sabia se era capaz de sentir.
Não tinha mais nome, mas ainda assim o chamavam pelas ruas: “Doido!” “Louco!” Por vezes, seu nome eram frases, repetidas tantas vezes para que ele não se confundisse mais: “Fique longe, filho!” “Tá vendo? Como pode deixar uma pessoa assim solta por ai!” Mas tinha sorte, casa ele tinha duas; uma era branquinha e para passar as férias, até enjoar ou até que enjoassem dele.
Mesmo sem alma, possuía visão e alguma coisa acelerava, batucando em seu peito, quando ouvia música e, quando assistia o transitar incessante da natureza colorida, sentia o cheiro da chuva, sentia o vento. Sentia! E foi esse sentir que o impediu de se jogar da ponte mais alta da cidade. “Será que a vida muda quando se despenca de uma ponte?” – pensou, e com assombro, descobriu que também era capaz de pensar. Quanto tempo mais esconderiam isso dele?
Tapou as orelhas e ouviu música; fechou os olhos e assistiu a espetáculos maravilhosos, de cores e seres humanos; dançavam e cantavam só para ele. E se todos que fechassem os olhos e os ouvidos por um minuto também pudessem ver? Saiu perguntando, inocente. Ninguém escutou. Tentou fazer com que todos assistissem, eles precisavam ver, isso mudaria tudo; eles deveriam, necessitavam, como poderiam ter vivido sem isso por tanto tempo?
Mas ninguém entendeu, e ele já não podia mais andar pelo mundo. Debateu-se, tentou levar as mãos aos ouvidos, mas aquelas correntes também não entendiam. Não via o sol, já não se debatia, mais uma vez, aceitou.
Até que um dia as correntes se foram e o Sol apareceu pela frestinha da pequena janela, iluminando o branco irritante de seu quarto. Quando saiu, viu tanto iguais a ele: alguns de uniformes ainda mais brancos que as paredes, com copinhos, ofereciam balinha colorida, quanta educação! Parecia o céu! Seria o céu?
Passou por todos os corredores, cumprimento com um aperto de mão o senhor de barba branca que cantarolava sua banda preferida; sorriu para a brancura enjoativa das paredes, reconheceu que estava de férias. Fez poesia, descobriu o amor, cantou com seu cantor preferido, usou a imaginação.

Tentou provar a todos sua força. Mais uma vez tiraram dele a liberdade; mas dessa vez ele entendeu que nunca poderiam tirar-lhe a alma. Só ele foi capaz de fazê-lo, descendo tarde da noite e pedindo socorro as correntes que sempre o prenderam. Dessa vez, elas o libertaram para sempre e, sorrindo, ele cantarolou, pela última vez: “”Yesterday, all my troubles seemed so far away..”