Já não existia, era só corpo
jogado no mundo, tentando inspiração naqueles filmes de auto-ajuda que passavam
na televisão abraçada por uma grade que o impedia de mudar o canal; buscava por
quês naqueles livros de “ajuda-todo-mundo” que, com seus finais felizes,
vendiam aos montes.
Somente caminhava por não
conseguir controlar suas pernas; nem em seu próprio corpo mandava mais. Imagina
só! Era alma penada, mas sem a alma. Não se expressava, nem sabia se era capaz
de sentir.
Não tinha mais nome, mas
ainda assim o chamavam pelas ruas: “Doido!” “Louco!” Por vezes, seu nome eram
frases, repetidas tantas vezes para que ele não se confundisse mais: “Fique
longe, filho!” “Tá vendo? Como pode deixar uma pessoa assim solta por ai!” Mas
tinha sorte, casa ele tinha duas; uma era branquinha e para passar as férias,
até enjoar ou até que enjoassem dele.
Mesmo sem alma, possuía
visão e alguma coisa acelerava, batucando em seu peito, quando ouvia música e,
quando assistia o transitar incessante da natureza colorida, sentia o cheiro da
chuva, sentia o vento. Sentia! E foi esse sentir que o impediu de se jogar da
ponte mais alta da cidade. “Será que a vida muda quando se despenca de uma
ponte?” – pensou, e com assombro, descobriu que também era capaz de pensar.
Quanto tempo mais esconderiam isso dele?
Tapou as orelhas e ouviu
música; fechou os olhos e assistiu a espetáculos maravilhosos, de cores e seres
humanos; dançavam e cantavam só para ele. E se todos que fechassem os olhos e
os ouvidos por um minuto também pudessem ver? Saiu perguntando, inocente.
Ninguém escutou. Tentou fazer com que todos assistissem, eles precisavam ver,
isso mudaria tudo; eles deveriam, necessitavam, como poderiam ter vivido sem
isso por tanto tempo?
Mas ninguém entendeu, e ele
já não podia mais andar pelo mundo. Debateu-se, tentou levar as mãos aos
ouvidos, mas aquelas correntes também não entendiam. Não via o sol, já não se
debatia, mais uma vez, aceitou.
Até que um dia as correntes
se foram e o Sol apareceu pela frestinha da pequena janela, iluminando o branco
irritante de seu quarto. Quando saiu, viu tanto iguais a ele: alguns de
uniformes ainda mais brancos que as paredes, com copinhos, ofereciam balinha
colorida, quanta educação! Parecia o céu! Seria o céu?
Passou por todos os
corredores, cumprimento com um aperto de mão o senhor de barba branca que
cantarolava sua banda preferida; sorriu para a brancura enjoativa das paredes,
reconheceu que estava de férias. Fez poesia, descobriu o amor, cantou com seu
cantor preferido, usou a imaginação.
Tentou provar a todos sua
força. Mais uma vez tiraram dele a liberdade; mas dessa vez ele entendeu que
nunca poderiam tirar-lhe a alma. Só ele foi capaz de fazê-lo, descendo tarde da
noite e pedindo socorro as correntes que sempre o prenderam. Dessa vez, elas o
libertaram para sempre e, sorrindo, ele cantarolou, pela última vez: “”Yesterday,
all my troubles seemed so far away..”
Sensacional!
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