sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O Médico e o Monstro

Já não existia, era só corpo jogado no mundo, tentando inspiração naqueles filmes de auto-ajuda que passavam na televisão abraçada por uma grade que o impedia de mudar o canal; buscava por quês naqueles livros de “ajuda-todo-mundo” que, com seus finais felizes, vendiam aos montes.
Somente caminhava por não conseguir controlar suas pernas; nem em seu próprio corpo mandava mais. Imagina só! Era alma penada, mas sem a alma. Não se expressava, nem sabia se era capaz de sentir.
Não tinha mais nome, mas ainda assim o chamavam pelas ruas: “Doido!” “Louco!” Por vezes, seu nome eram frases, repetidas tantas vezes para que ele não se confundisse mais: “Fique longe, filho!” “Tá vendo? Como pode deixar uma pessoa assim solta por ai!” Mas tinha sorte, casa ele tinha duas; uma era branquinha e para passar as férias, até enjoar ou até que enjoassem dele.
Mesmo sem alma, possuía visão e alguma coisa acelerava, batucando em seu peito, quando ouvia música e, quando assistia o transitar incessante da natureza colorida, sentia o cheiro da chuva, sentia o vento. Sentia! E foi esse sentir que o impediu de se jogar da ponte mais alta da cidade. “Será que a vida muda quando se despenca de uma ponte?” – pensou, e com assombro, descobriu que também era capaz de pensar. Quanto tempo mais esconderiam isso dele?
Tapou as orelhas e ouviu música; fechou os olhos e assistiu a espetáculos maravilhosos, de cores e seres humanos; dançavam e cantavam só para ele. E se todos que fechassem os olhos e os ouvidos por um minuto também pudessem ver? Saiu perguntando, inocente. Ninguém escutou. Tentou fazer com que todos assistissem, eles precisavam ver, isso mudaria tudo; eles deveriam, necessitavam, como poderiam ter vivido sem isso por tanto tempo?
Mas ninguém entendeu, e ele já não podia mais andar pelo mundo. Debateu-se, tentou levar as mãos aos ouvidos, mas aquelas correntes também não entendiam. Não via o sol, já não se debatia, mais uma vez, aceitou.
Até que um dia as correntes se foram e o Sol apareceu pela frestinha da pequena janela, iluminando o branco irritante de seu quarto. Quando saiu, viu tanto iguais a ele: alguns de uniformes ainda mais brancos que as paredes, com copinhos, ofereciam balinha colorida, quanta educação! Parecia o céu! Seria o céu?
Passou por todos os corredores, cumprimento com um aperto de mão o senhor de barba branca que cantarolava sua banda preferida; sorriu para a brancura enjoativa das paredes, reconheceu que estava de férias. Fez poesia, descobriu o amor, cantou com seu cantor preferido, usou a imaginação.

Tentou provar a todos sua força. Mais uma vez tiraram dele a liberdade; mas dessa vez ele entendeu que nunca poderiam tirar-lhe a alma. Só ele foi capaz de fazê-lo, descendo tarde da noite e pedindo socorro as correntes que sempre o prenderam. Dessa vez, elas o libertaram para sempre e, sorrindo, ele cantarolou, pela última vez: “”Yesterday, all my troubles seemed so far away..”

Um comentário: